UM GUIA PARA CONHECER SãO PAULO – COM A AJUDA DE KALAF E NáSTIO MOSQUITO

Ainda estou a dois quarteirões de distância quando ouço os ritmos do samba, subvertidos por um baixo grave e assertivo. Ao fundo de uma faixa pedonal revestida com mosaicos brancos, um edifício em estilo Beaux-Arts chamado Casa de Francisca brilha em tons de roxo e vermelho a partir do interior. As janelas altas do segundo andar estão completamente abertas, revelando centenas de pessoas a divertir-se. Atrás da casa, distingue-se a silhueta nocturna do centro histórico de São Paulo.

Outrora lar de uma loja de instrumentos musicais, depois uma emissora de rádio e, mais tarde, uma carapaça vazia, o edifício acolhe agora mais pessoas do que alguma vez acolheu. Quando entro, parece que estão a testar a integridade estrutural dos seus pilares coríntios. Uma fusão de negros, brancos, mestiços, indígenas, homens e pessoas de género fluido, a multidão salta e canta as letras das músicas, com as suas camisas brancas a esvoaçar e os chapéus a cair no chão.

Emergindo dos clubes angolanos da região sudoeste de África na década de 1980 dilacerada pela guerra, a cultura da kizomba propagou-se pela diáspora afro-portuguesa em vagas que atravessaram o Atlântico.

Todos os olhos estão postos na cabine do DJ, onde o escritor e músico Kalaf Epalanga, nascido em Angola, está a passar kizomba — um género abrangente que inclui afrobeats, pop português, hip-hop ardente e soul melancólico. Quando o ex-Buraka Som Sistema abranda o ritmo, casais juntam-se numa sincronicidade transpirada ou beijam-se sob o candelabro. Os dois espelhos altos do palco reflectem a cena.

Emergindo dos clubes angolanos da região sudoeste de África na década de 1980 dilacerada pela guerra, a cultura da kizomba propagou-se pela diáspora afro-portuguesa em vagas que atravessaram o Atlântico. É difícil definir porque é considerada uma atitude – uma matriz de ritmos latinos, sintetizadores new wave e techno primitivo, mas também moda ousada e espírito de sobrevivência, e começou a criar raízes em São Paulo. O cantor de afro-pop cabo-verdiano Djodje é kizomba, bem como o DJ de afrobeats DJ Joss Dee, sediado no Rio de Janeiro. O significado literal de kizomba em idioma kimbundu, um dos vários falados em Angola, é “festa”.

Três nomes de referência da música urbana portuguesa – Dino D’Santiago, Kalaf Epalanga e Nástio Mosquito – estão na cidade de São Paulo a apresentar a sua arte.

Nesta cidade com cerca de 12 milhões de habitantes – o maior centro de expressão portuguesa e, de longe, a cidade mais populosa do Brasil – Kalaf tem um enorme número de fãs. E esta celebração da kizomba, numa parceria com Nástio Mosquito, um artista conterrâneo e amigo de Kalaf, é a sua forma de testarem as águas para a criação de um museu permanente de Design de Kizomba na cidade, possivelmente na Casa de Francisca. A dupla está claramente a tramar alguma.

Terminado o seu set, sentei-me à conversa com Kalaf e ele explicou-me as coisas da seguinte forma: “a diáspora africana no mundo ocidental aceita quaisquer empregos que haja disponíveis no fundo da pirâmide”, disse com uma voz lenta. “São imigrantes, invisíveis durante toda a semana. Ninguém sabe a sua história. Mas quando chega a sexta-feira, vão buscar as suas melhores roupas à lavandaria, vão ao barbeiro e orgulham-se da sua apresentação. É por isso que lhe chamamos design de kizomba”. Nástio, com uma afro mais indómita do que a de Kalaf e prematuramente grisalha, diz que é exactamente o oposto do fado, um género musical português com canções melancólicas e ritmos originários do século XIX. “O fado era sobre desejo e dor. A kizomba festeja. Mostra que existe uma maneira diferente de viver sob pressão. Diz: ‘temos o dia de hoje, por isso vamos dançar, vamos beber, vamos f**er.”

“São Paulo não tem a beleza da natureza que existe no Rio de Janeiro. É uma cidade dura. Por isso, as pessoas só se têm umas às outras e à sua cultura.”

Kalaf, poeta e músico, ex-Buraka Som Sistema 

Na manhã seguinte, encontro-me com ambos a cerca de 20 minutos da Megafauna, uma livraria iluminada pelo sol onde irão apresentar um simpósio de kizomba. Os livros empilhados até ao tecto representam uma grande variedade de autores que reflectem o autêntico mosaico que é São Paulo. Desde o século XVI até 1888 — uma data terrivelmente tardia para a abolição – o Brasil recebeu mais pessoas escravizadas de África do que qualquer outro país do novo mundo. E a partir do boom industrial do pós-guerra, muitos dos seus descendentes foram parar a São Paulo. Mais de metade dos brasileiros são negros ou mestiços. E, no entanto, ainda vivem maioritariamente à margem da sociedade. “Há muitos brasileiros desligados das suas raízes”, diz Nástio, “mas começam a ganhar uma voz”.

Desde o século XVI até 1888, o Brasil recebeu mais pessoas escravizadas de África do que qualquer outro país do novo mundo.

A Megafauna fica no piso térreo do desconexo Edifício Copan, uma torre de 38 pisos em forma de S construída com impressionantes tiras de betão pelo falecido grande arquitecto brasileiro Oscar Niemeyer na década de 1960. O edifício acolhe também uma galeria de arte, no piso acima, um café na porta ao lado esculpido no interior uma carapaça em betão, uma boutique vintage e 1.160 apartamentos nos pisos superiores. Os artistas escolheram este marco arquitectónico para atrair pessoas dos quatro cantos da cidade. “É importante que a nossa cultura tenha acesso a sítios como este”, diz Nástio.

Esta zona do centro histórico sofreu a sua dose de negligência. Embora o índice de criminalidade de São Paulo que seja mais baixo do que a da mais turística cidade do Rio de Janeiro, Kalaf admite que a “cidade não é para brincadeiras”. Diz-me para estar atenta e esconder o meu telefone na rua para não ser roubada por ladrões de bicicleta. Mesmo assim, ele adora o espírito da kizomba que envolve Edifício Copan. “São Paulo não tem a beleza da natureza que existe no Rio de Janeiro. É uma cidade dura. Por isso, as pessoas só se têm umas às outras e à sua cultura.” Kalaf não se refere apenas a africanos como ele, mas a todo um espectro de pessoas que ocupam a rua à porta do Edifício Copan. “A influência imigrante define a malha da cidade. Dá-nos um vislumbre rápido daquilo que o Brasil representa”, afirma. “Tenho a mesma sensação em Nova Iorque – uma grande Babilónia com pessoas de todas as partes do mundo.”

Actual & Tropical

Percebo o que ele quer dizer quando almoço no Z Deli, um restaurante com cabines forradas a cabedal num edifício de meados do século junto ao Edifício Copan. O Z é gerido por uma das 20.000 famílias judaicas que procuraram asilo em São Paulo no século XX. Uma caminhada de dez minutos leva-nos até ao Museu Judaico, instalado numa antiga sinagoga de estilo Bizantino e inaugurado em 2021 para expor artefactos brasileiro-judaicos. O menu do Z é composto por sabores híbridos que atravessam continentes. Peço aquilo que penso ser uma sanduíche de pastrami. Aquilo que chega à mesa é carne desfiada e cebolos sobre uma cama de batatas fritas acompanhado por uma dose de maionese, um frasco de molho picante e um Guaraná. As culturas brasileira e judaica parecem ter pouco em comum para além da fé.

“A influência imigrante define a malha da cidade. Dá-nos um vislumbre rápido daquilo que o Brasil representa.”

Kalaf

No entanto, borbulhando em São Paulo, juntam-se com uma sinergia fascinante. A leste da baixa da cidade, do outro lado de uma via rápida construída num sítio um pouco estranho, encontra-se o bairro da Liberdade, o lar espiritual de centenas de milhares de paulistanos japoneses – a maior comunidade nipónica existente fora do Japão. Vou até lá com Fernando Filet, um guia alto e bronzeado que me conduz sob candeeiros vermelhos em forma de lanternas de papel. O emaranhado de ruas estreitas de Liberdade não consegue conter a enorme quantidade de pessoas que compra pastéis inspirados em Hello Kitty e yakitori (um peixe do Amazonas), por isso os vendedores ocupam também um viaduto.

Observando o trânsito lá em baixo, Fernando partilha uma descrição do falecido Anthony Bourdain, que visitou o local quando filmou as séries No Reservations e The Layover. “Ele disse: ‘São Paulo é como se Los Angeles se tivesse vomitado em Nova Iorque”. Fernando diz isto a todos os seus clientes porque Bourdain — que adorava a cidade — tinha uma certa razão. Não se costumam ouvir hinos de bossa nova sobre as auto-estradas que atravessam o bairro da Liberdade nem sobre as suas ruas cobertas de graffiti. São funcionais, mas divertidas, e cheiram a trattorias italianas e lojas de falafel libanesas. Quando nos aproximamos da ampla e movimentada Avenida Paulista, as coisas ganham algum requinte. Ladeada por torres brutalistas audazes, a Avenida Paulista tem uma personalidade retro e uma beleza não-convencional que me agrada. Fernando aponta para um elegante edifício da década de 1970, desenhado pelo famoso arquitecto Paulo Mendes da Rocha, que emerge do solo como uma boca de sino.

No entanto, prefiro o Museu de Arte de São Paulo, o MASP, uma caixa de vidro gigante erguida no ar por quatro robustas pernas de betão, pintadas num tom garrido de vermelho. Quando a arquitecta Lina Bo Bardi emigrou de Itália para o Brasil no final da década de 1940, levou consigo o modernismo italiano e a ideia de espaços de convívio. “Era uma mulher do povo”, diz Fernando. Na praça, enquadrada pelas pernas vermelhas do MASP, o espírito comunitário é palpável, cheio de skateboarders com colunas de som e famílias a passear. Fernando diz-me para subir até à enorme galeria de vidro, onde pinturas de nomes mundialmente famosos como Modigliani e Picasso estão expostas ao lado de artistas brasileiros emergentes, com as suas obras revestidas a vidro e assentes sobre fundações de betão. Daqui, podemos olhar pelas janelas de vidro e ver o sol do fim da tarde encontrar-se com a linha do horizonte.

Seria capaz de passar uma semana a admirar museus grandiosos como o MASP, mas prometi aos meus novos amigos da kizomba que iria conhecer Barra Funda, a norte da baixa da cidade. Numa manhã de sol, caminho por entre os seus encantadores terraços revestidos a estuque. Vejo uma loja de antiguidades em baixo de um enorme toldo e uma pastelaria adornada com azulejos que vende pastéis de nata. Um periquitão-maracanã verde-eléctrico empoleirado no ombro de um velhote assobia enquanto entro na Galeria HOA.

No Museu de Arte de São Paulo, pinturas de nomes mundialmente famosos como Modigliani e Picasso estão expostas ao lado de artistas brasileiros emergentes.

A primeira galeria de arte com um proprietário negro do Brasil, a HOA está determinada a mudar a narrativa da arte latino-americana do colonial para o pessoal, experimental e revolucionário. O seu interior é mais luminoso do que o exterior, com pinceladas vibrantes e vídeos pulsantes. O mesmo se aplica à Mendes Wood, ao virar da esquina – uma galeria onde inúmeras salas abobadadas nos prendem e arrebatam com instalações que exploram a essência do negro e do outro, criações de artistas brilhantes que, finalmente, encontraram uma plataforma de expressão. Com efeito, existe uma galeria a cada 500 metros – e a avaliar pelo cocktail de idiomas que vou ouvindo, as pessoas vêm de toda a parte para as apreciar.

A Covid teve um impacto inesperadamente positivo neste bairro, outrora conhecido pelos seus imigrantes coreanos e pela indústria. A vida caseira transbordou para a rua e, quando a cidade voltou a abrir, restaurantes, bares e galerias mudaram-se para os armazéns outrora vazios da zona. As pessoas começaram a falar. Mesmo ao lado da Rua Barra Funda, vejo jovens bonitos e tatuados a entrarem no Mescla, um café com mesas comunitárias e um chefe boliviano que brinca com a gastronomia cubana, andina e mediterrânea. Numa zona repleta de enotecas, toda a gente enche aqui a barriga.

Nessa noite, regresso à Casa de Francisca para ver o português Dino D’Santiago, um artista português de ascendência cabo-verdiana, electrizar o público com um espectáculo onde todos os braços se erguem no ar. Não consigo evitar levantar-me da minha cadeira de cinema vintage. “Estamos a bombar”, diz Nástio, quando consigo ouvir novamente. O público está em perfeita sincronia com a dança de grupo Electric Slide. Conhecem todos os movimentos, todas as palavras. Kalaf diz que não é de admirar. “Todas estas pessoas têm as mesmas referências culturais e as suas estrelas não costumam dar espectáculos na cidade.”

Pergunto-lhe sobre os dois espelhos do palco. Ele diz-me que o reflexo faz parte do design emblemático da kizomba. “Esta cultura é frágil”, afirma. “As nossas tradições são efémeras, orais. A nossa história não está em lado nenhum, mas quando olhamos para nós e uns para os outros, conseguimos vê-la.”

Publicado na edição de Abril de 2024 da National Geographic Traveller (Reino Unido).

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