MAIS JARDIM, MAIS JANELAS, MAIS ESPAçO PARA EXPOSIçõES E UMA PALA PARA TODOS OS ENCONTROS: O NOVO CAM ABRE-SE à CIDADE DE LISBOA

“Engawa”. A expressão refere-se a um elemento da arquitetura tradicional japonesa que está entre o interior e o exterior. Podíamos chamar-lhe alpendre, mas é mais do que isso porque, enquanto o alpendre português é definitivamente um espaço exterior, o “engawa” japonês é um lugar de contaminações e intercâmbios entre o dentro e o fora. Um “local de encontros”, como diz Benjamin Weil, diretor do Centro de Arte Moderna (CAM) da Fundação Calouste Gulbenkian. O conceito de “engawa” inspirou o projeto do arquiteto japonês Kengo Kuma para o novo edifício do CAM, que, após quatro anos encerrado para obras, será inaugurado na próxima sexta-feira. Com mais janelas, mais transparências, uma maior abertura ao exterior, o edifício procura uma permanente ligação entre as obras de arte expostas, o jardim lá fora e o céu azul de Lisboa. Kuma recriou o edifício original de betão do CAM, inaugurado em 1983, acrescentando-lhe uma impressionante pala de 100 metros de comprimento, com uma cobertura de 3.274 telhas de cerâmica brancas: a pala é a tal “engawa” que domina toda a nova entrada do CAM, que se fará agora pelo número 2 da rua Marquês da Fronteira, em Lisboa.

Quando o edifício original do CAM foi concebido pelo arquiteto britânico Leslie Martin criou alguma controvérsia por impor-se como uma barreira, “um fecho cego” do jardim da Gulbenkian, explicou aos jornalistas António Feijó, presidente da Fundação Calouste Gulbenkian. Em 2005, a Fundação adquiriu dois hectares do jardim Vilalva, contíguos ao amplo parque desenhado, no final da década de 1960, por Gonçalo Ribeiro Telles e António Viana Barreto. Isto permitiu estender o jardim para sul, até à Marquês da Fronteira, possibilitando também que o novo edifício “respire”. Com duas fachadas completamente envidraçadas, é possível atravessar o edifício com o olhar, com o verde da vegetação prolongando-se para ambos os lados. 

O desenho da nova área do Jardim Gulbenkian é da autoria do arquiteto paisagista libanês Vladimir Djurovic, que se inspirou na linguagem do jardim existente. Desapareceu a muralha que se impunha na Marquês da Fronteira, mas as suas pedras foram utilizadas para criar um pequeno muro, com bancos para os transeuntes. Quem passa na rua vê o jardim, quem está no jardim vê Lisboa. O muro, mais do que uma divisão, é “um convite a entrar e desfrutar”, diz a arquiteta paisagista Paula Corte Real, que colaborou na implantação do projeto. E a pala cria uma espécie de "praça pública", para receber tanto os que vêm de dentro como os que vêm de fora. A ideia é que a fusão entre o CAM e o jardim se estenda entre o jardim e a cidade.

Foram mantidas as grandes árvores que lá havia, como carvalhos, sobreiros e azinheiras, a que se juntaram novas plantações, de forma a que, neste momento, o jardim apesar de novo tenha já a sua biodiversidade, explica a arquiteta, sublinhando também a existência de um sistema de drenagem e aproveitamento da água da chuva que será reutilizada na rega do jardim. Os arquitetos destacam também a maior sustentabilidade do edifício - com mais luz natural e um menor recurso ao ar condicionado, uma vez que a “engawa” funciona também como proteção do sol. Quanto à intervenção no edifício, os objetivos principais eram acrescentar perto de mil metros quadrados de área expositiva, no novo piso -2, requalificar os espaços existentes e garantir o reforço sísmico. A nova loja e o restaurante, com menu do chef André Magalhães, completam a lista de novidades. No total, a obra custou 58 milhões euros, revelou António Feijó ao Público.

As exposições: Leonor Antunes, Fernando Lemos e um novo olhar sobre a coleção

Porque o CAM é muito mais do que um edifício, é preciso falar também das exposições que, a partir de dia 21, poderão ser visitadas. Benjamin Weil garante que, 40 anos depois da inauguração, o CAM mantém-se fiel à sua missão como grande casa da arte moderna e contemporânea em Portugal, mostrando e apoiando os artistas das várias disciplinas, desde os mais emergentes aos mais conceituados. “Queremos que seja artist centered, ou seja, centrado no artista”, diz o diretor do CAM. 

A Nave, o espaço nobre do CAM, terá sempre um artista convidado que terá “carta branca” para fazer ali o que quiser: preferencialmente, conceber uma obra site specific. A primeira artista a ocupar este espaço é Leonor Antunes. A artista portuguesa, que vive e trabalha em Berlim desde 2005, apresenta uma enorme instalação escultórica intitulada “da desigualdade constante dos dias de leonor”, título que foi buscar a um desenho de Ana Haterly, de 1972 (ano de nascimento de Leonor Antunes). Partindo do trabalho quase desconhecido de Sadie Speight, arquiteta e designer britânica que contribuiu para o primeiro projeto de arquitetura do CAM, Leonor Antunes convoca a história e as práticas de artistas como Marian Pepler, Charlotte Perriand, Lina Bo Bardi e Sophie Taeuber, entre outras, questionando a invisibilidade das mulheres na história da arte moderna. No espaço ao lado, o Mezanino, estará sempre uma outra exposição que dialoga com a da Nave. Neste caso, estão obras de 30 artistas mulheres da Coleção do CAM, escolhidas por Leonor Antunes, incluindo, por exemplo, Ana Haterly, Helena Almeida e Grada Kilomba.

Na galeria Engawa (no piso -1 mas agora com janelas para o jardim) apresenta-se uma exposição temporária, que neste momento é “Calígrafo Ocidental” sobre a relação de Fernando Lemos (1926-2019) com o Japão nos anos 60 do século XX, quando o artista recebeu uma bolsa da Fundação Gulbenkian para estudar caligrafia japonesa. Cerca de 70 desenhos e 50 fotografias (a maior parte delas impressas pela primeira vez para esta exposição) de Fernando Lemos são apresentados a par de peças de outros artistas da coleção do CAM e de um conjunto de estampas japonesas da coleção do Museu Calouste Gulbenkian.

A nova galeria Coleção, situada no piso -2, é o espaço privilegiado para mostrar algumas das mais de 12 mil peças da coleção do CAM numa exposição temática. Neste momento, tem a exposição “Linha de Maré”, título inspirado numa obra de Hamish Fulton (“Tide Line”), que evoca a linha onde duas correntes se encontram em alto mar. As curadoras Ana Vasconcelos, Helena de Freitas e Leonor Nazaré selecionaram cerca de oitenta obras do acervo do CAM, desde o final do século XIX até aos dias de hoje, que de alguma forma tocam o conceito de revolução: desde a Revolução do 25 de Abril até às revoluções que o presente exige, sobretudo relacionadas com o planeta. Um dos destaques é a instalação vídeo de Gabriel Abrantes, “Bardo Loop”, encomendada pelo CAM para esta abertura, e que ocupa uma nova sala, mais pequena, onde ficará depois instalada a Sala de Desenho.

Outra novidade é a sala de reservas visitáveis, onde o público poderá aceder “às entranhas do museu” e “às rotinas exigentes” para manter uma coleção desta dimensão. Aí poderão ser vistas, num pequeno espaço, cerca de 200 obras da Coleção do CAM (em rotatividade) de artistas como Amadeo de Souza-Cardoso, Almada Negreiros, Maria Helena Vieira da Silva, Júlio Pomar e Fernando Calhau, entre muitos outros. À segunda-feira, sob marcação, os visitantes poderão mesmo escolher algumas obras que queiram ver.

No átrio da entrada está localizada a H-Box, espaço concebido por Didier Faustino para acolher obras em vídeo. E há ainda a Sala de Som e o Espaço-Projeto (antiga Sala Estúdio), que por agora acolhem mais um momento da temporada japonesa: Go Watanabe apresenta, no Espaço Projeto, “M5A”5, uma instalação site specific composta por um trabalho vídeo em grande escala, enquanto Yasuhiro Morinaga inaugura a nova Sala de Som, apresentando a instalação inédita “The Voice of Inconstant Savage”, uma encomenda do CAM ao artista. Estes três espaços são de entrada livre.

“Parece-me importante ter vários ritmos de visitas, as pessoas podem entrar por várias formas. Gostaríamos que fizessem visitas quase diárias, umas vezes por dez minutos, outras por duas horas, podendo visitar os espaços livres ou comprar bilhetes para as galerias, dependendo das sua disponibilidade e dos seus interesses”, diz Benjamin Weil sobre a lógica de programação. A pala ("engawa") e o jardim serão também espaços habituais da programação, promete.

Ana Botella explica que “o espírito de colaboração e interação é a essência do novo CAM”, começando pela ligação entre os três eixos - arquitetura, arte e natureza - e estendendo-se à ligação com os públicos e com os artistas e outros intervenientes do ecossistema local e internacional. “Estamos conectados com a cidade e com a sua energia”, diz. “O CAM partilha a cena artística de Lisboa”, que será, garante, “uma parte fundamental da nossa agenda”.

Depois da inauguração oficial, na sexta-feira, o CAM está aberto ao público a partir de dia 21 com um programa especial ao longo de todo o fim de semana, incluindo conversas, concertos, visitas guiadas e oficinas para os mais novos. Ana Botella espera que este seja um momento de festa, com muita alegria, partilha e dança. “Esperamos que toda a gente - dos mais novos aos mais velhos, dos que já conhecem aos que nunca entraram no CAM – sinta algo e queira voltar.” Até 7 de outubro a entrada é gratuita para todas as exposições.

 

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