Os dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) mostram uma travagem a fundo no crescimento de passageiros nos aeroportos portugueses. Até ao final do mês de julho, o Aeroporto Humberto Delgado teve um acréscimo de 1,2% de procura em relação ao mesmo período em 2023. A generalidade dos aeroportos portugueses, revela o INE, só aumentou em 2,3% o número de passageiros.
A última década foi marcada por dois factos revolucionários.
Primeiro, a concessão dos aeroportos à multinacional francesa Vinci, com a sua imparável ambição de aumento de receitas, nunca antes verificada nos tempos de gestão pública. Em 2010, o Estado português previa que o aeroporto da Portela atingisse o esgotamento de capacidade aos 12 milhões de passageiros. Com a gestão privada, afinal, quase triplicou de capacidade: 33 milhões, em 2023.
Segunda revolução, a chegada a Portugal, em força, das companhias lowcost: Ryanair e Easyjet lideraram a proliferação de novas rotas turísticas, ponto a ponto, sem transbordos, entre cidades europeias, a custos acessíveis às classes médias.
A revolução deixou marcas históricas. Em 2017, o aeroporto de Lisboa cresceu 17% no número de passageiros e a generalidade dos aeroportos 16%. Em vésperas da pandemia COVID-19, o impacto ainda era, ao ano, de 7% em Lisboa e de 6% na média dos aeroportos nacionais.
O turismo continua a ser uma galinha dos ovos de ouro, mas a galinha já não engorda como dantes. “O crescimento de dois dígitos desapareceu, estamos a lutar arduamente para que o crescimento seja de um dígito, isto é onde estamos neste momento", anunciou José Luís Arnaut, presidente do Conselho de Administração da ANA Aeroportos, sexta-feira passada, na conferência comemorativa do Dia Mundial do Turismo. Na previsão da Confederação do Turismo de Portugal, as dormidas só vão aumentar dois a três por cento em 2024, contra os espantosos 10% de crescimento registados em 2023.
As previsões de procura aeroportuária que justificaram a construção, de raiz, de um mega-aeroporto em Alcochete, assentam na multiplicação dos clientes. Nas contas dos consultores da TIS, em 2050, a capital irá atrair, no pior dos cenários, 66 milhões de passageiros aéreos, o dobro do que existe hoje. No cenário mais favorável, chegará aos 108 milhões. A ser assim, o novo aeroporto seria capaz de ir para além de uma segunda triplicação de clientes, em cima da triplicação já operada pela ANA na primeira década de concessão.
Extraordinário? Talvez, mas a imaginação humana é sem limites. A TIS aceitou fazer, pela “metodologia acordada com a Comissão Técnica Independente (CTI),” uma projecção ainda mais arriscada, dos passageiros em Alcochete em 2086: serão entre 111 e 142 milhões: 4,3 vezes mais do que hoje.
A reprodução algorítmica de passageiros causou escândalo à concessionária dos aeroportos portugueses. “A metodologia de projeção de tráfego adotada pela CTI não reflete as melhores práticas da indústria, tendo sido adoptada uma abordagem simplista e assente em majorações optimistas”, está escrito no parecer da VINCI.
Se os políticos tivessem lido, de forma crítica, os milhares de páginas de relatórios e de anexos da CTI, dificilmente teriam considerado credível a opção por um mega-aeroporto em Alcochete. “As taxas de crescimento que a CTI, por adjudicação própria, decidiu colocar numa folha de Excel, não têm qual relação com a realidade económica, demográfica, tecnológica e até dos restantes aeroportos europeus”, critica Pedro Castro, consultor de aviação comercial. “Para mim, a projeção de procura da CTI é muito questionável”, concorda Álvaro Costa, economista especializado em Transportes da Universidade do Porto. “Assenta numa série de pressupostos que são questionáveis, mas estão lá explícitos, portanto quem ler o relatório com cuidado percebe o que é questionável”, faz questão de acrescentar.
Os consultores da TIS, José Manuel Viegas e Ana Vasconcelos, deixam claro várias limitações e incertezas que poderão condicionar a verificação, na realidade, do seu “exercício” de previsão, como lhe chamam. A lista de incertezas, que ficaram de fora do cálculo, é longa: os planos do parceiro internacional que venha a ganhar o concurso para a privatização da TAP; as medidas regulatórias de limitação da aviação comercial por razões ambientais; eventos político-militares em grande escala; a evolução tecnológica e de custos da aviação; e a evolução da própria “atractividade de Portugal como destino turístico”.
Nos últimos anos, várias cidades europeias decidiram implementar políticas drásticas para conter o excesso de turismo e proteger padrões mínimos de qualidade de vida dos residentes. São disso exemplos Amsterdão, que restringiu fortemente novos vôos, Barcelona e Paris. A capital francesa abandonou os planos para construir um novo terminal no seu principal aeroporto, para mais 40 milhões de passageiros. “Se os mercados emissores estão a tomar medidas de contenção e, até, de redução de tráfego aéreo, não se percebe de onde virão os passageiros para multiplicar por dois ou três os clientes do aeroporto de Lisboa”, contesta Pedro Castro.
Os consultores da TIS confessam a adesão a um pressuposto que lhes permite multiplicar turistas de forma aritmética, sem pruridos com a realidade e os seus campos de possibilidade. “Neste exercício, não foram consideradas as limitações de capacidade de atendimento ao fluxo de passageiros (sobretudo do segmento turístico), seja por insuficiência de oferta de alojamento e outros serviços, seja por vontade política de que a presença de turistas nos espaços públicos não exceda determinados limites”, escrevem, preto no branco, José Manuel Viegas e Ana Vasconcelos.
A projeção da CTI é recebida como ficção científica e despudorada falta de critério. “Hoje, já é claro para toda a gente que aqueles números, numa folha Excel, nunca vão sair do papel, porque assentam em pressupostos falsos, impublicáveis em revistas científicas”, sentencia Pedro Castro. “Infelizmente, essas pessoas nunca serão responsabilizadas por terem colocado o dinheiro público a servir algo que é totalmente irrealista”, lamenta.
Será possível, hoje, imaginar Lisboa a responder à triplicação, ou mesmo à duplicação de passageiros no aeroporto? “Eu não acredito que a economia seja capaz de absorver aquelas taxas. E isso tem a ver com o número de hotéis que é necessário, o número de pessoas para servir os hotéis, os transportes. Acho que era preciso perceber como é que aquilo pode ser materializado na realidade”, descreve o economista Álvaro Costa.
Para “percebermos” isso, será necessário encomendar um novo estudo.
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