"DEIXOU DE SER UMA CIDADE, é UM PARQUE DE DIVERSõES". ESTE MOVIMENTO QUER MUDAR A HABITAçãO EM LISBOA E Já DEU UM PASSO IMPORTANTE

"Eu queria ter vizinhos, pessoas que eu conhecesse, a quem pudesse dizer bom dia, novos ou velhos, mas que morem aqui", diz Rosa Santos, moradora no bairro do Castelo, em Lisboa. Queria ter um café que abrisse antes das 10 da manhã e onde o café não custasse mais de um euro, queria ter uma mercearia onde pudesse ir comprar algo que lhe faltasse para o jantar, queria ter silêncio à noite e andar na rua de dia sem ter de pedir licença. Rosa tem 60 anos e mora no Castelo desde que nasceu, onde já antes moravam os pais e os avós. "Chegámos a ter três mil pessoas, agora somos 200", lamenta.

"Resiste um grupo desportivo, porque há gente que luta para que aquilo continue. Promovem as marchas, com gente que vem de fora, porque não há habitantes, com certeza. E esta cidade deixou de ser uma cidade, é um parque de diversões. Os turistas vêm, legitimamente, fazer as suas férias, não estamos contra isso. Eu também gosto de ir a outras cidades. Mas as cidades não podem ter só turistas." As pessoas vêm, passeiam, divertem-se e vão-se embora. Mas os turistas não cuidam da cidade, porque não é sua. E, certamente, não fazem comunidade. Foi por isso que Rosa Santos assinou a petição por um Referendo pela Habitação.

O Movimento Referendo pela Habitação (MRH), lançado há dois anos, é um movimento cívico e apartidário que reclama o direito a morar em Lisboa e propõe a proibição de alojamento local em imóveis destinados à habitação. Para tal, defende a realização de um referendo local, de forma a que todos os moradores possam dar a sua opinião sobre o tema. Neste momento, o MRH garante que já reuniu o número de assinaturas necessárias. “Temos mais de nove mil assinaturas", explica Raquel Antunes, estudante e uma das integrantes do movimento, sublinhando que para levar o tema à Assembleia Municipal são necessárias entre cinco mil e 7.500 assinaturas de pessoas recenseadas em Lisboa. As assinaturas do MRH serão entregues depois do verão.

Aline Nunes, jurista que integra o MRH, explica que os referendos locais só podem abordar questões que sejam da responsabilidade da autarquia. Esse é um dos motivos que levou o movimento a focar-se no alojamento local. O referendo proposto tem apenas duas perguntas: Concorda em alterar o Regulamento Municipal do Alojamento Local no sentido de a Câmara Municipal de Lisboa, no prazo de 180 dias, ordenar o cancelamento dos alojamentos locais registados em imóveis destinados a habitação?; Concorda em alterar o Regulamento Municipal do Alojamento Local para que deixem de ser permitidos alojamentos locais em imóveis destinados a habitação? Ou seja, pretende-se, por um lado, revogar as licenças que foram dadas de forma considerada indevida, e, por outro, alterar o regulamento para prevenir novas licenças em prédios de habitação.

"Existe uma sentença do Supremo Tribunal de Justiça que estipula que o alojamento local é uma atividade comercial e que não deveria ser permitido em apartamentos ou em casas com uso habitacional. Basicamente, essa sentença afirma que a grande maioria do alojamento local é ilegal", explica Aline Nunes. "O que estamos a pedir é que a Câmara cumpra a sentença do Tribunal."

O MRH recorda que a cidade de Lisboa foi permissiva durante muito tempo e que em 2019 já estavam registadas 20 mil licenças de alojamento local. "Neste momento, mais de 60% das habitações na freguesia de Santa Maria Maior são de alojamento local. Há vários bairros no centro da cidade onde há mais alojamento local do que habitantes", diz Raquel Antunes. "Vivemos uma grave crise habitacional no nosso país e, sobretudo, em Lisboa. Temos de recuperar a função social das habitações." O grupo sublinha que não está contra o turismo, está contra a falta de regras que tem levado ao desmoronamento das comunidades locais.

Alojamento local: entre o desenvolvimento do turismo e a crise de habitação

"O bairro está bonito porque há pessoas que compram e investem", lança uma transeunte que passa no largo do Chafariz de Dentro enquanto os elementos do MRH montam os seus cartazes amarelos. Essa é uma opinião muito comum, admitem os elementos do MRH: o turismo alavanca a economia, cria empregos e permite reabilitar muitos prédios que estavam em más condições. 

Por um lado, isso é verdade, mas "o crescimento do alojamento local em Lisboa aconteceu de forma desproporcionada. É a cidade da Europa que tem uma maior proporção de alojamento local", explica Agustín Cocola-Gant, investigador da Universidade de Lisboa, catalão que se estabeleceu há dez anos na capital e que tem abordado as questões ligadas ao urbanismo. "Há muitas cidades que perante a crise da habitação estão a tomar medidas para reduzir ou até mesmo terminar com o alojamento local. Trata-se de proteger a função social da habitação", defende, lembrando o impacto tremendo do AL nos preços das habitações - seja para arrendamento ou compra. Florença, Amesterdão, Nova Iorque, Barcelona são algumas das cidade onde estão a ser adotadas medidas que limitam e controlam o alojamento local.

"As poucas pessoas que ficam a morar nestes locais perdem os vizinhos, perdem o acesso ao espaço público, o comércio de proximidade, queixam-se do barulho. Há uma perda de qualidade de vida e também se verificam problemas de saúde mental, stress crónico, irritabilidade por não poder dormir, isolamento, depressão, etc, etc. É um problema silenciado e silencioso", explica Agustín Cocola-Gant.

O MRH acredita que o referendo é “a única solução possível dada a inércia do poder político, que tem servido os interesses dos senhorios e dos investidores, muito acima dos interesses das pessoas que vivem” na cidade. "Construir mais não é a solução", defende o investigador que integra o movimento. Primeiro, porque não é necessário: existem casas, só que não estão a ser utilizadas para habitação; depois, porque se trata de recuperar os centros da cidade e não de construir casas para as pessoas morarem na periferia; e finalmente porque isso não irá fazer baixar os preços. Além disso, diz, "precisamos de uma solução mais imediata".

Essa mesma posição foi defendida recentemente por Mariana Mortágua: “Não nos digam que o problema da habitação é um problema de falta de construção, porque a construção para hotéis, para alojamento local, para condomínios de luxo, tem continuado. O problema é que cada vez mais as casas estão a ser sugadas para o turismo, para a habitação de luxo, que é virada para o mercado externo, e não há casas onde as pessoas possam viver”, argumentou a líder do Bloco de Esquerda.

“Chega a um momento em que nós temos de olhar para a realidade das pessoas, como elas vivem, como elas não conseguem ter habitação, como a economia está excessivamente dependente do turismo, como o turismo pressiona as nossas cidades, causa poluição, e é preciso dizer que há um limite e que o turismo tem de ter regras. Tem de haver um limite para o número de hotéis que pode ser construído em Lisboa e tem de haver um limite para o número de alojamento local que um bairro como Alfama pode comportar”, defendeu.

Preocupada com a crise da habitação, a plataforma Casa Para Viver convocou mais uma manifestação pelo direito à habitação para 28 de setembro em várias localidades do país. "Para todos aqueles que não ganham mais de seis mil euros e não têm apoio do Estado para comprar casas de 600 mil euros, a questão do acesso à habitação está longe de estar resolvida", explica este movimento em comunicado. "As políticas do novo Governo acabaram com as poucas medidas do programa Mais Habitação que combatiam a especulação imobiliária, a turistificação total das cidades, a especulação financeira e a tímida limitação das rendas. A situação na habitação das pessoas que vivem em Portugal era má, agora é muito pior."

A plataforma Casa Para Viver "continua a bater-se para que haja políticas de habitação que permitam que todos os que vivem, estudam e trabalham em Portugal possam ter direito a conseguir viver numa casa digna", explica.

Como funciona o referendo local?

Reunidas as assinaturas, a Assembleia Municipal de Lisboa “vai ter de votar a proposta de referendo”. Esta etapa “marca uma nova fase do processo de referendo”. O movimento entrará agora “em campanha” junto dos deputados municipais para “que votem favoravelmente esta proposta e deem às pessoas a possibilidade de decidir sobre o presente e o futuro da cidade”. 

Na crença de que “é possível” que a Assembleia Municipal de Lisboa aprove “a possibilidade de este referendo acontecer”, o MRH promete continuar a “mobilização nas ruas” para “criar uma força grande o suficiente para que, de facto, os deputados não possam propriamente ignorar que este é um processo em marcha”.

Se a Assembleia Municipal aprovar o referendo, as perguntas têm de ser ainda aprovadas pelo Tribunal Constitucional. Só então será marcado o referendo. Cumprido todos os prazos, o processo poderá demorar cerca de quatro meses.

Se mais de 50% das pessoas que moram em Lisboa votarem, o resultado do referendo é vinculativo. Os ativistas do MRH sabem que isso será difícil, mas mantêm a motivação. “Nós não estamos a pedir ao poder local que faça o que quer que seja. Nós estamos a dizer que queremos que as pessoas que podem votar no município de Lisboa tenham a possibilidade de se pronunciar sobre este tema em específico e daí esta ferramenta de democracia direta”, explica o MRH. 

E mesmo que, no final, o resultado não seja o que desejam, nunca será uma batalha perdida. "O que queremos é que seja o início de uma discussão pública, para começar do zero e corrigir as coisas que não foram feitas bem. Para que haja um planeamento urbano tendo em conta a relação entre o turismo e os espaços urbanos da cidade", explica Aline Nunes.

2024-07-27T07:31:32Z dg43tfdfdgfd