Este é o quinto dia de uma expedição de investigação ao arquipélago de Bailique e nada me preparou para a vivência deste lugar, no ponto mais oriental do rio Amazonas, onde o maior rio do planeta desagua no mar.
Sou professor universitário, especialista em ecologia marinha e brasileiro. Sei que este rio, quando atinge finalmente o oceano, descarrega mais água do que os seis maiores rios do mundo todos juntos. O Ganges, o Yangtzé, o Congo, o Mississípi – poderíamos aliás somar o volume total de toda esta água, acrescentar-lhe mais a de alguns rios mais famosos, e, mesmo assim, não igualaríamos o caudal descarregado pelo Amazonas.
Esta viagem, realizada em Fevereiro de 2024, é a minha segunda expedição de investigação a Bailique, o arquipélago na foz do rio, onde as água doce e salgada se misturam. Não é a primeira vez que venho aqui, mas, mesmo assim, quando contemplo o rio a partir do pequeno e resistente barco a motor que nos transporta de aldeia em aldeia, não consigo abarcar a sua magnitude.
Eu e o meu colega Felipe Vieira vamos conversando sobre isto, gritando para a nossa voz se sobrepor ao rugido do motor, ou sentando-nos na margem do rio depois de tentarmos lavar o calor e o suor do dia na casa onde pendurámos as nossas camas de rede. Tal como eu, Felipe nasceu neste país, mas tão longe daqui que, para ele, a Amazónia era sobretudo um conto, uma causa, uma parte da história e da imaginação nacional.
“Como pode ser isto um rio?” – pergunto. “É absurdamente monstruoso. Parece que estamos no oceano.”
Felipe responde: “Quando olho em frente, o horizonte é só água a tocar no céu.”
Esta não é a Amazónia que a maioria dos forasteiros imagina quando pensa nela. Comecemos pelas cores: a superfície da água apresenta-se em estranhas faixas contrastantes, separadas com precisão, ora azuis-acinzentadas ora castanhas. As cores rodopiam como tintas que não se misturam ou correm lado a lado com contornos tão direitos como paus de vassoura. A água azul-acinzentada é a água salgada do oceano. A castanha é do rio, escurecida pelos sedimentos naturais arrastados até ali ao longo de mais de 1.600 quilómetros e em toda a largura da bacia amazónica, desde os riachos das florestas nebulosas andinas aos afluentes caudalosos das terras baixas da zona média da bacia hidrográfica.
Quando atinge finalmente o oceano, o Amazonas descarrega mais água do que os seis maiores rios do mundo todos juntos.
Detritos vegetais. Restos animais. Fragmentos rochosos. A água do rio vem tão carregada de sedimentos e é tanta ao chegar às ilhas de Bailique, a caminho do mar aberto, que resiste a misturar-se com a água salgada de modo a criar o habitual estuário de águas salobras.
Em vez disso, a água doce do Amazonas avança directamente pelo Atlântico, praticamente intacta, como um rio no interior do oceano. Encaminha-se para norte, conduzida pelas correntes de maré, passando pela Guiana.
É a pluma do rio Amazonas, como os oceanógrafos lhe chamam. E a pluma avança, com águas fluviais e sedimentos agregados pela sua própria massa e propulsão, oceano acima, em direcção ao mar das Caraíbas.
Todas as manhãs, nas explorações que aqui conduzimos, eu e Felipe começamos por navegar sobre a pluma, entrando e saindo dela, para ser mais exacto, com o nosso exímio barqueiro Chico da Silva, originário de Bailique, que manobra através daquelas estranhas faixas de cor. Muitas vezes, o seu pequeno barco abana tão intensamente no meio da turbulência que nos agarramos ao bordo para não cairmos. Os inquéritos que levamos foram impressos em folhas de plástico para ficarem protegidos dos salpicos e da humidade. Deparamo-nos também com torrentes regulares de chuva que começam todas ao mesmo tempo e depois terminam de maneira igualmente abrupta. Os ilhéus vivem em inúmeras aldeias dispersas. Por isso, quando Chico nos deixa num novo ancoradouro, subimos degraus de madeira lamacentos até chegarmos aos passadiços que servem de rua e de passeio e procuramos o líder local.
E então dizemos: “Bom dia, senhor. Somos da Universidade Federal do Espírito Santo e integramos um projecto que está a investigar os ecossistemas do rio Amazonas. O senhor aceita que façamos algumas perguntas às pessoas da sua comunidade?”
A água azul-acinzentada é a água salgada do oceano. A castanha é do rio, escurecida pelos sedimentos naturais arrastados até ali ao longo de mais de 1.600 quilómetros.
Obtemos aprovação e descemos pelo passadiço com os nossos blocos de notas. Dirigimo-nos às pessoas que descansam nos alpendres, naquela atmosfera quente e húmida: Será que o/a senhor/senhora gostaria de participar num estudo? Alguns recusam, por estarem muito ocupados ou por não terem interesse. Na maior parte das vezes, convidam-nos a aproximarmo-nos, apreensivos, mas curiosos. Sentamo-nos junto das portas ou em cadeiras de plástico. As perguntas foram formuladas com simplicidade. Há quanto tempo vive aqui? Como usa o rio, o oceano, a floresta? “Diga-me o que o preocupa. Diga-me o que está a mudar.” À noite, quando estou deitado na minha rede, revejo-os na minha mente: os pescadores, os cultivadores de bagas de açaí, as mulheres com filhos pequenos a seu lado. As suas histórias mantêm-me acordado.
O rio, dizem-nos as comunidades locais, já não é o que era. Está pior. Arranca a terra ao longo das margens e as casas são construídas de modo a evitar a subida do nível das águas, como as da floresta alagada. Porém, nem as estacas nem as casas palafíticas são suficientes quando o terreno debaixo delas é levado pela água. O alpendre traseiro da casa vazia que eu e Felipe arrendámos aqui, em Vila Progresso, fica a cerca de 50 metros da água. Há dez anos, dizem-nos, avistava-se daqui outra fieira de casas situadas entre a nossa e o rio. Todas se desmoronaram. Terra caída, diz a gente de Bailique.
O rio, dizem-nos as comunidades locais, já não é o que era. Está pior.
A jovem e pesarosa mãe com quem conversei ontem sabe que a casa da sua família, localizada na margem do rio, está condenada. Ela trabalha em Bailique, ajudando a gerir uma cooperativa de pescadores, mas o marido levou os filhos para viverem na populosa Macapá – a cidade mais próxima, a 12 horas de barco, rio acima – onde a escolaridade é mais fiável. Há algumas escolas nas ilhas, mas constituem um desafio.
Os danos sofridos pela margem do rio estão a minar as fundações da única escola de ensino básico e secundário, que se situa aqui, em Vila Progresso. E sendo o rio a única via de acesso efectiva, os barcos a motor não conseguem transportar as crianças para a escola quando a maré alta destrói um cais ou um canal de acesso fica, inesperadamente, obstruído pelos sedimentos carregados pelo caudal. Em alguns dias de aulas, mesmo quando as crianças conseguem chegar à escola, o horário é de apenas duas horas.
A terra caída não é a única catástrofe em câmara lenta que nos é relatada vezes sem conta. A água doce canalizada tem agora um sabor salobro durante muitos meses. Por vezes, é apenas um pouco de sal, mas suficiente para tornar a água imbebível e problemática para cozinhar e lavar. Eu e Felipe entreolhamo-nos: viver aqui, rodeados pela maior extensão fluvial do planeta, e ser obrigados a comprar água engarrafada a um barco de entregas?
Os barcos a motor não conseguem transportar as crianças para a escola quando a maré alta destrói um cais ou um canal de acesso fica, inesperadamente, obstruído.
A salinização prejudica o trabalho de muitos que aqui vivem. É mencionada em quase todas as conversas. Os cultivadores de açaí interrogam-se sobre o futuro dos pequenos pomares de árvores de que cuidam e às quais trepam para colher as bagas. Danificará o solo mais salgado as raízes?, perguntam. Alterará isso as colheitas? As famílias de pescadores constatam que as espécies de água doce das quais dependem estão a diminuir ou a desaparecer durante os meses salgados. Um pescador de segunda geração confidenciou a Felipe que aprendeu a ver quando o nível de salinização está alto: a água brilha de forma diferente, disse.
Bailique recebe notícias de fora do arquipélago. Os painéis solares e a Internet via satélite têm vindo a proliferar e já vimos salas cuja principal peça de mobiliário é um televisor de ecrã panorâmico. As explicações que nos dão, quando nos descrevem o que lhes está a acontecer, são essencialmente aquilo em que nós, cientistas, acreditamos. Por um lado, é a mudança do clima, como eles chamam às alterações climáticas. À medida que o nível dos mares sobe em toda a parte, as alterações sazonais violentas tornam-se cada vez mais comuns. Aqui, o rio é muito mais fundo nos meses chuvosos, jorrando torrentes de água e arrancando o solo. Noutros meses, há secas terríveis (o ano passado foi o pior desde que há registo em toda a Amazónia) que enfraquecem a força com que a água doce corre para o mar, facilitando a infiltração da água salgada.
A intervenção humana mais imediata também causa problemas. As centrais hidroeléctricas, construídas nas últimas décadas num rio a norte, alteraram a hidrologia da região e as dinâmicas dos afluentes que antigamente confluíam na foz do Amazonas. E embora esta zona alagadiça não seja benigna para os criadores de gado que desflorestaram outras áreas da Amazónia, a verdade é que se adequa ao búfalo-da-água, criado por alguns ganadeiros da região de Bailique para consumo da carne.
Por isso, à medida que o represamento das águas altera as correntes e os búfalos deambulantes calcam os leitos dos rios, o equilíbrio ecológico há muito existente vai sendo radicalmente perturbado aqui, em Bailique. Durante a maré alta, observamos pedaços da margem do rio quebrarem-se e eu vou pensando que estou perante uma janela aberta para o futuro do planeta. Não! Corrijo-me – para o presente do planeta.
A salinização prejudica o trabalho de muitos que aqui vivem e a intervenção humana mais imediata também causa problemas.
A subida do nível dos mares já provocou crises de erosão e salinização em comunidades costeiras de todo o mundo. Eu e Felipe conseguimos ver as pessoas de Bailique a tentarem adaptar-se àquilo que está disponível. Constroem tanques de contenção nas traseiras das suas casas para a água das chuvas. Abandonam casas ribeirinhas danificadas e mudam-se mais para o interior. Horroriza-me ver o rio devorar os lares de famílias que residiam aqui há mais de meio século. No caso de muitas delas, o rio também devora a casa seguinte. Conhecemos famílias que já tinham mudado de casa seis vezes.
Algumas pessoas desistem, como o dono da casa vazia que arrendámos. Empilham os seus bens num ferry e partem para Macapá. Mudou a água, mudou a vida, disse-me um pescador resignado, recordando os amigos e os vizinhos que já partiram.
Também aprendi outra lição sobre este lugar, oculta pelo terreno selvagem de Bailique. Talvez a palavra “disfarçada” seja mais apropriada porque, durante a minha primeira expedição, em 2022, senti-me confuso, no início, por não avistar qualquer sinal da vegetação que esperava ver nas orlas costeiras das ilhas: os mangues.
Faço parte de um grupo internacional de cientistas que estudam os benefícios ecológicos dos mangues, esses densos emaranhados de troncos e ramos arqueados que crescem nas águas quentes de maré e em seu redor.
Utilizamos o termo “mangues” para certos tipos de árvores que necessitam destas condições de água salgada tropical e, nos últimos anos, percebemos quão desesperadamente o planeta precisa deles. A arquitectura lenhosa subaquática destas árvores transforma-as num lar seguro para os animais aquáticos dos quais dependem as comunidades piscatórias. Em terra, estas redes rijas de raízes evitam a erosão. Os mangues são excepcionalmente eficientes na captura de carbono: no sedimento lamacento localizado sob as suas raízes, conseguem reter até mais de dez vezes a quantidade de carbono retida por outros tipos de árvores tropicais.
Vale a pena lembrar que a água e as condições meteorológicas são factores naturais de perturbação na foz do rio.
No entanto, em muitos locais onde tradicionalmente prosperavam, os mangues estão a desaparecer, sendo eliminados para dar lugar a aquiculturas de camarão e outras explorações. No Brasil, existe legislação para proteger as florestas de mangue, mas, para aplicar essas leis, o governo precisa de conhecer a sua localização exacta, razão pela qual a nossa equipa (que inclui outros exploradores da National Geographic, como Margaret Owuor e Thiago Sanna Freire Silva) realizou a primeira expedição a Bailique. Sabíamos ainda que ninguém procedera ao levantamento da vegetação existente nas ilhas da foz do rio. Lembro-me de o nosso barco se deslocar lentamente através dos diversos canais do arquipélago, aproximando-se de um troço de costa após outro e…
Nada de mangues. Onde estariam eles? Víamos palmeiras de açaí bem altas, bambus e coqueiros. Começámos a sair do barco para investigar, cada vez mais perplexos. Por fim, avançámos pela vegetação densa, olhámos para cima e à nossa volta, e, BUM!, mangues – mas crescendo de uma forma que nenhum de nós pensara ser possível. Encontravam-se a alguma distância da água, dispersos no meio de árvores de água doce, emaranhados nelas e partilhando o seu solo. Como ecologista marinho, garanto-vos que isto não acontece.
Ou pelo menos assim o pensávamos. A Amazónia não se parece com nenhuma outra região da Terra e a foz do rio não se parece com nenhum outro lugar da Amazónia. Aquilo que ali encontrámos poderá ser um tipo ecologicamente único de floresta, com mangues de 40 metros, crescendo numa terra que parece insuficientemente salgada para sustentá-los. Chico levou-nos lá, no seu barco a motor, para que eu pudesse mostrar aqueles monstruosos mangues furtivos ao Felipe, que não integrara a equipa de 2022. Bastou-lhe um minuto, esticando o pescoço para cima e semicerrando os olhos, para perceber aquilo que estava a contemplar. “Nossa!”, exclamou.
Afinal, bosques invulgares como este crescem por todo o arquipélago e isto significa que os mapas actualizados incluem agora centenas de hectares de florestas de mangue elegíveis para protecção. Algumas destas árvores são tão grandes, e provavelmente tão antigas, que os solos retidos debaixo delas poderão ser sumidouros de carbono incrivelmente profundos, “um valor sem precedentes para a mitigação do carbono”, escrevemos, no primeiro artigo científico que publicámos após aquela visita inicial.
Até aqui, as notícias são encorajadoras. Eu e Felipe estamos a descobrir que as pessoas deste sítio não têm consciência de que vivem no meio dos mangues. Têm os seus próprios nomes para as árvores identificadas pela nossa equipa: segundo elas, aqueles mangues benéficos de que ouvem falar são os bosques distantes que sobem e descem pela orla costeira atlântica.
Quando os interrogamos no inquérito sobre a forma como utilizam a natureza e nos referimos aos mangues, a sua resposta é sempre a mesma: “Não temos cá disso.”
Durante a maré alta, observamos pedaços da margem do rio quebrarem-se e eu vou pensando que estou perante uma janela aberta para o futuro do planeta. Não! Corrijo-me – para o presente do planeta.
O que mudará quando perceberem que têm? Não podemos ter a certeza. Neste momento, a nossa tarefa consiste em ouvir e aprender. Além das preocupações, aquilo que ouvimos é resiliência. Gosto de imaginar um futuro em que os mangues ajudarão Bailique a adaptar-se: a redenominação das florestas talvez atraia mais recursos ou desempenhe um papel nalgum futuro acordo brasileiro de transacção de créditos de carbono. Os mangues vão disseminar-se à medida que as forças turbulentas da água continuem a reconfigurar o solo da foz do rio: por fim, acho eu, estas árvores crescerão dentro das aldeias e em seu redor. Isto significa que haverá mais raízes a contrariar a erosão nos lugares onde os mangues conseguirem instalar-se. E mais berçários subaquáticos.
A minha esperança é poder oferecer informação e apoio, enquanto os habitantes do arquipélago aprendem a aproveitar os mangues, mas tenho de esclarecer que aqui não há panaceias. A perturbação acelerada induzida pela humanidade é a mais urgente das ameaças imagináveis, não só em Bailique, como em toda a Amazónia e mais além. Vale a pena lembrar, contudo, que a água e as condições meteorológicas sempre foram factores de perturbação naturais na foz do rio, este gigantesco lugar de intercâmbio entre o Amazonas e o Atlântico, e que os habitantes mais sábios das ilhas sabem disso.
Certo dia, eu e Felipe estávamos no barco do Chico, encaminhando-nos para um canal que conduzia à aldeia seguinte quando, de repente, o barco parou. Chico deu um suspiro. Saltou borda fora para o rio, aterrou em pé e contornou o barco para empurrá-lo.
Perguntámos-lhe o que aconteceu.
“Perdi a oportunidade”, respondeu.
Por pouco, explicou. Agora, este canal enche-se e esvazia tão depressa que, se o barco não entrar nele na janela de oportunidade, ficamos atolados nas ervas aquáticas. Ele aprendera os horários do dia ouvindo aquilo a que aqui se chama o canal dos pescadores, as conversas diárias entre os barqueiros de Bailique – por norma gritadas, de barco para barco, navegando sobre a pluma.
Mas ouvira mal as horas. Ou então o Amazonas desafiara as previsões, comportando-se, até nesta estreita passagem do arquipélago, como o mais poderoso rio do mundo. Eu e Felipe saltámos também borda fora, para dentro da água morna, que nos dava pelos tornozelos. Mudou a água, mudou a vida, pensei. Chico acenou-nos com a cabeça: continuem a empurrar.
Artigo publicado originalmente na edição de Janeiro de 2025 da revista National Geographic.